domingo, fevereiro 28, 2010

Desses começos

Outro daqueles textos velhos que eu acho e posto.
Esse é de dezembro passado.

Pratico todos os dias um canibalismo conseqüente. Mordo orelhas, ombros, pescoços, cantos das minhas próprias unhas. Essa ferida que você me fez eu lambo para ver se seca, se some, se é verdade que saliva tem poder cicatrizante.
Enquanto eu como as unhas, você não liga. Enquanto eu passo as unhas em todas as pequenas feridas que acumulo, você some. Então eu sangro por todos os lados sem canibalismo nem nada. Nem agüento assim tanta hemorragia. Nem agüento mais nada sem você do lado.
Fiquei besta. Fiquei tonta. Me explica onde eu esqueci aquela razão que sempre me deu tanto orgulho. Minha lógica está morando onde, mesmo?
As músicas mudaram de gosto e eu queria muito mesmo saber tocar piano. Praticaria todos os dias aquela nudez renascentista e musical, tocando todas as coisas. Óperas, sambas, tangos - qualquer coisa que coubesse em teclas. E tocaria suas pernas. Dedilharia todos os pedaços e depois beijaria os braços, o nariz e as pontas dos dedos – arrancando notas. E meus dedos percorreriam seu rosto com meus olhos fechados, como para decorar o caminho. Te tocaria em cada ponto de corpo com muitas músicas ao fundo.
Então seria sua vez de tocar acordeom na minha cintura, entender a dinâmica de tudo. Decorar os meus caminhos só para depois inventar rumos novos, novos truques, esquecimentos.
Mas eu como unhas, não toco piano e você não me liga.

sábado, fevereiro 27, 2010

Mariana XXXI - Segunda temporada

Ele disse
Te amo, Mariana.
Ela perdeu a voz.
Não acreditou e não acreditaria.
Tinha que esperar pra ver
se o ombro
não queria só mantê-la fiel enquanto se acertava em outros cantos
Passou um mês e Mariana estava ainda pensando em paixão.
O ombro sumiu com as frases feitas no bolso
e ela ficou com pessimismos
e flertes avulsos

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Tia Paquita

Baseada em fatos reais



Espanhola de família, Paquita cresceu no interior do estado do Espírito Santo. Casou-se com um filho de italianos, Lucas. Conheceram-se por que ela quis. Era dele a voz bonita que dizia "senhores passageiros com destino a não sei onde, embarquem na plataforma em cinco minutos".
Paquita ouvia aquela voz e quis saber quem era o dono. Foi da cabine ao altar.
Lá pelas tantas, resolveu aparecer na tv uma tal Xuxa que cismou em chamar suas assistentes todas de paquitas. Foi aí que começou a zona.
A Paquita tinha que explicar sempre que era Paquita legítima, de cartório, e aguentar espantos ao dizer o nome. Sempre lidou muito bem com isso, apesar de tudo, exceto nos dias de mal humor.
Paquita está já na casa dos mais de cinquenta menos de sessenta. Fez inclusive uma tatuagem dia desses, quando estava de saco cheio das próprias pernas sem figuras.
E nem faz muito tempo, ela foi ao banco receber a aposentadoria. Chegou lá, enfrentou fila, perdeu um pouco da paciência e finalmente foi atendida. Deparou-se com um desses caixas engraçadinhos.
- Mas é Paquita mesmo?
- Sim, Paquita.
- Da Xuxa?
- Claro! Aposentei-me, vim receber.
Então andou dois passos para trás, pôs as mãos na cintura e cantou em alto e bom som, no meio do do banco com as pernas em pêndulo, uma, depois a outra, em chutes altos.
- Ilarilariê ô ô ô! Ilarilariê ô ô ô! Ilarilariê ô ô ô! É a turma da Xuxa que vai dando o seu alô!

terça-feira, fevereiro 23, 2010

De amizade falecida


Coisa chata isso de amor. Resolve que coça num dia, resolve que dorme no outro. Resolve doer numa visão besta cheia de falta de contato.
Coisa estranha isso de ausência e esse fingimento de integridade e completude quando a base nem me olha na cara. Passa e vira, finge que sou fantasma. Finge que não incomodo, quando a verdade é que qualquer música do Chico ou alguma risada besta madrugada a dentro lembram que eu ainda existo.
Nem falo de pele não. Existo forte na cabeça, com Chico, com chaga, com casca, com Drummond e Bandeira e volta e meia Augusto dos Anjos.
Nunca mais vai ler Viviane Mosé.
Nunca mais pra não ter na cara que a falta que eu te faço é a mesma que eu sinto.
Mais fácil continuar bebendo, enchendo as fuças de outra coisa não tão amiga e não tão cúmplice. Qualquer coisa não verdade, que verdade demais incomoda e parece qualquer coisa ofensiva, mas nunca carinho. Nunca ternura. Nunca o que eu fui pra você por todas as ligações e os anos e as linhas de peças de teatro.
Não aprenderemos a sambar como gente prêta, que minha mulatice e sua loirice não são páreo para esses quadris.
Ninguém vai dizer o que você não gosta de ouvir. Ninguém vai estar lá. Ninguém vai conseguir entender esses gritos da mesma forma que entende os sorrisos.
Completude a gente não vai ter mais, sem uma à outra.
Risada não vai ter mais do mesmo jeito.
Da última vez foi um abraço perguntando de ódio. Abraço bêbado.
Caí logo de cara, que não sei mesmo lidar com isso de ternura. Mas como é que depois de tanta dor eu vou confiar de novo?
Sobrou a pedra da Fafi.

domingo, fevereiro 21, 2010

Mariana XXX - segunda temporada

A menina atemporal
arrumou tempo para trabalhar o despudor.
Sem medo, Mariana encontrou por aí aquele cara de quem ela não gostava
(o mesmo que deu início à sua novela)
Então ela, que não mais se desespera,
flertou sem qualquer culpa
com o sarcasmo de quem ela ainda diz não gostar.
O grande problema foi que
já na boca da fera
ela disse não.
Queria o que?
só no início da novela ele era
a boca do leão.
Mariana e seu não andaram então
dignos e vazios
por mais uma transparente escuridão
- sem fuga de ombro.

Para não falar nada

Tela em branco e eu transbordando. No corpo, feixes de ondas, luz e transes involuntários. Nada de palavra e uma ânsia doida de escrever qualquer coisa.
Vale a marca do lado da boca. Um vermelho aqui. Um roxo ali. Uma pancada dessas feitas em quinas baixas.
Memória de cheiro parece coisa muito impalpável quando eu mesma tento e nada vem em baixo do nariz.
Algumas coisas conseguem ser mais bonitas do que parecem. Precisam ser vistas com luz baixa.
Não quero esconder coisa alguma.
Dizer o que com a boca se é tudo pele inteira?

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

A bela adormecida

Criança ainda, perguntou à fada madrinha sobre o que ouvia nas histórias das janelas:
- Que coisa é fim?
- Fim de que, Aurora?
- Fim que todo mundo diz que dói.
- De amor?
- Isso acaba?
- Se acaba de um lado dói à beça.
E Aurora pediu à fada madrinha que nada doesse. Morria de medo de dor e passou a ter ainda mais medo de paixão. A fada não sabia como paixão podia não doer. Falou que dava um jeito, mesmo sem saber que jeito.
Aurora foi crescendo e o rei e a rainha resolveram apresentá-la à sociedade. As outras fadas vieram todas. Encheram a menina de presentes. Uma deu beleza, outra deu inteligência, uma ainda inventou que Aurora não cheiraria mal nunca.
A fada madrinha foi entrando em pânico, que com todas essas coisas, Aurora não ia nunca ficar sem sofrer, nem sem paixão.
Falou então que a menina morreria aos dezesseis com dedo espetado.
Baniram a fada, mas ela deu um jeito de se comunicar com a princesa. Combinaram que se Aurora um dia sentisse muita dor, a chamaria sem ninguém ver, então o encanto da fada faria com que ela dormisse sem envelhecer até a dor passar.
Aurora ficou tão confortável que se esqueceu dos muros. Deu de piscar os olhos e distribuir sorrisos. Arrumou logo um monte de gente lhe desejando os lábios. Deu-lhos a um ou outro, até aparecer um tal príncipe.
Tiro e queda.
Aurora ficou burra burra. Deu-se inteira e se rasgou. Sentia-se feliz todos os dias. Fogos de artifício dentro dela. Mas o príncipe deu de ter mais o que fazer, foi deixando Aurora de lado e se enfiando em outras saias menos reais.
A princesa quis desmanchar. Acabou tudo e se ardeu em febre. Doía tanto que ela achava que nem podia mais.
Foi quando apareceu a fada madrinha e uma agulha que os pais se esqueceram de esconder. Aurora se furou com gosto e dormiu.
Acharam que com beijo de príncipe ela acordaria, mas nada. A fada tratou de botar ali um dragão pra dar um jeito de a menina dormir com seus dezesseis anos super duráveis.
Foi passando o tempo e a dor ficou cozinhando ali até quase passar. Faltava a cartada final. Dragão dormiu estrategicamente e um príncipe inconsequente resolveu beijar Aurora pra ver se ela acordava. Matou o dragão para contar vantagem.
Aurora acordou meio zonza, sem bafo graças ao encanto da outra fada. O príncipe era simpático e o sono ensinou que estabilidade era coisa boa.
Nunca mais quis saber de paixão.
Casou com aquele mesmo e inventou de ser feliz para sempre.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

A menina dos poemas

Cecília escrevia todos os dias. Vício mesmo. Tentava muito com versos, mas um dia percebeu que não conseguia nunca não ser confessional. Confessional por confessional, resolveu escrever uma carta aos amantes e pregar pelas paredes da cidade.
Dizia muito claramente que era absolutamente psicopata, que investigava vidas alheias, que queria saber de todos os detalhes de todas as coisas que escapam às outras pessoas. Peguntava de cada amante a cada pessoa conhecida e discreta que tivessem em comum. Fuçava passados, olhava os astros, jogava i-ching e fazia mapa astral.
Completamente paranóica. Cecília não gostava de coisas que não podia prever. Então inventava as próprias histórias de amor pra depois chorar sozinha.
Chegou a um ponto em que nem sofria. Era ela, suas histórias e as muitas investigações.
Jamais se sentiu culpada, tinha técnica apuradíssima para que ninguém soubesse o tanto que ela sabia. Acabavam falando mesmo, então vinham mais detalhes.
Quando pregou nos muros a confissão, ninguém nem acreditou.
Cecília era doce demais.

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Se eu fosse Drummond

Parece que faz muito tempo, mas não tem nem quinze dias. Um arquivo aqui e outro ali que abro por acidente, então enxurradas de memória.
Perguntei por que os dias tem passado assim tão devagar. Ando completamente sem noção de tempo.
Parece que faz muito tempo que eu disse alguma coisa pela última vez. Parece que foi ontem que eu senti todas as coisas.
Não tenho dormido bem, por mais tempo que dure o sono.
Ando sem referência.
Pedaços de Aline aos quatro cantos da cidade.
Enforquem e esquartejem!
É pra servir de exemplo daquela máxima fatal:
proibido passear sentimentos.

sábado, fevereiro 06, 2010

Mistura

Não foi o que você disse quando disse não. Não foi o corte arterial de um eu te amo. Nem os sorrisos nos horários certos ou a visão de outras pessoas de mãos dadas.
Abri um pote de plástico grande na garganta e fui enchendo de raiva, paixão, sal, mel, vinagre e lágrima. Ferveu ali mesmo. Misturei sangue e mágoa.
Eu estava dormindo quando transbordou.
Não foi acúmulo.
Sem querer a cerveja caiu no tal do pote e ainda assim a mistura se manteve densa.
Quando vi, já estava do avesso e o pote era o centro de todas as coisas muito mais que a pele.
Os pêlos contavam histórias com mímica. Balé de arrepio em meus braços.
Não foi o vento.
A mistura toda derramou quando eu fiquei parada. Dormi. Sacudi o pote involuntariamente e a densidão não segurou o fogo.
Podia ter explodido, mas caiu.
O sono resolveu rever os ingredientes pra fazer análise e entender o surgimento do pote. O plástico amoleceu e descobriu-se que o problema era a fragilidade falsa da base de tudo.
O pote se manteve intacto.

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Biotônico fontoura

Disseram que os cabelos ocultam a verdade.
Cortei.
Sempre há problemas.
Vida mesmo.
Vamos crescer?
Eu sei que essas coisas de gente grande resolvem todas doer um tanto, mas eu não tenho mais medo de escuro.
Tem vela na bolsa, esqueiro, celular, lanterna.
Não pode nunca ficar sem família. Nem sem peso.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Migalhas

Pensei que a bola na garganta fosse só fumaça demais. Mas esses sentimentos são muito físicos
paixão na bariga. Nojo na garganta. Raiva na cabeça.
Não sou capaz de engolir tanta mentira.
Dei corpo, alegria, veias saltando e a voz já nem resta.
Foi gota d'água toda culpa fez sentido. Down on me. Down em mim.
Banheiro nem foi igreja de nada.

Não quero mais saber de lirismo que não é libertação.
Vamos que é hora de cortar o cabelo.