sexta-feira, julho 27, 2012

A roda da fortuna e o rei de paus

texto meu publicado no caderno Pensar do jornal A Gazeta

A sala era fumaça pura à meia luz. Um cheiro forte de incenso e cigarro e uns olhos pretíssimos, pintados com kohl. Adalgisa, mesmo vendo muitas cores na cartomante, achava que nos olhos estava o principal. Quis, logo de cara, aquele negrume para si. Sentou-se tímida, afoita, desatada e destrambelhada – desesperada de primeiro amor. Não disse nada além de boa noite e do nome perguntado de cara pela cartomante.
Madama Carlota tinha sido recomendada pela faxineira da escola. Era grande, gorda, colorida, espalhafatosa e de uma doçura quase maternal. Enquanto sorteava as cartas a serem postas na mesa, deixava um cigarro aceso no cinzeiro. Adalgisa tossia.
- Quantos aninhos você tem, minha flor?
- Quinze.
- Tem cara de até menos. Vamos ver o que o futuro te traz, queridinha. Quero que pense numa pergunta a fazer para as cartas. Se concentre nela enquanto corta o baralho, sim?
- Eu quero saber como vai...
- Não precisa me dizer, sim? Guarde a pergunta com você e se concentre nela. Mas fique calminha. Não precisa ter medo de Madama Carlota.
- Tudo bem.
- Tão pequenininha, você. Estou vendo aqui a roda da fortuna e o rei de paus. Vamos ver... vamos ver... queridinha! Você está apaixonada?
- É pra eu falar?
- Ô queridinha! O tarô não mente nunca! Trate de ficar mais calma, florzinha. O acaso é uma força muito grande que dá sempre um jeito de avisar pra nós o que ele vai aprontar. Esse baralho aqui é uma das vozes do acaso e você não chegou à toa em Madama Carlota. Acalme este coraçãozinho. Vejo muita força aqui no seu futuro, sim?
- Força como?
- Florzinha, você vai ser uma mulher muito forte. Uma imperatriz. Veja cá a imperatriz. Mas, olhe. Não leve a mal o que Madama Carlota vai dizer. Esse garoto aí que você gosta.
- Sim.
- Este garoto é um atraso de vida. Ele te prende ao seu passado e não deixa você virar a imperatriz do futuro.
- Tudo isso o tarô está dizendo?
- Sim, florzinha. Ele também vai ser um homem muito bom, sim. Mas, me diga. Esse garoto te ama, florzinha?
- Era isso que eu queria saber, Madama.
- Ô, florzinha, deixe isso de lado, sim? Você pode ter muitos e muitos garotos novos e uns bons homens. Está tudo aqui, nas cartas. Você precisa crescer mais tempo longe dele.
- Mas eu gosto dele!
- E ele sabe disso.
- E como o tarô sabe disso?
- É o acaso, sim? O acaso sabe tudo. É uma força enorme, queridinha. Uma força maior do que Madama Carlota e do que você e do que o ônibus que atropelou uma moça um dia desses. Você viu no jornal?
- Quanto tempo?
- Quanto tempo o que, minha flor?
- Quanto tempo eu tenho que ficar longe do menino que eu gosto?
- Dez anos exatos.
- Não posso nem falar com ele, Madama Carlota?
- Pode sim, queridinha. Mas o amor precisa desse tempo para amadurecer. Você precisa virar antes uma grande imperatriz.
- Mas Madama Carlota, dez anos é quase minha vida toda!
- E com tanta vida assim pela frente, pra que você vai ter pressa, queridinha?
- Mas eu estou toda descompensada, Madama Carlota. Ele encostou essa semana o joelho no meu joelho no refeitório da escola e eu senti umas coisas quentes que eu nunca tinha sentido! E o olho dele, Madama Carlota! Ele tem os olhos mais bonitos do mundo!
- São verdes?
- Castanhos.
- Arrume uns olhos verdes primeiro, sim. Você é muito bonitinha, Adalgisa. Bote na frente os olhos azuis, depois os verdes, depois os pretos. Arrume uns pretos grandes e fortes que te ensinem como ser abraçada. Você vai longe, queridinha. Mas se afaste desse moço, sim?
- Mas vai dar tudo certo?
- Só daqui a dez anos. Mas não se afobe, você tem muito ainda o que amar.

E Adalgisa foi para casa com o coração na mão, acabadíssima. Mas no dia seguinte apareceu um menino loiro vindo de transferência com duas grandes bolebas azuis no lugar dos olhos. E na outra escola veio um de cabelo de anjo. E na faculdade vieram infinitos meninos – e até meninas.

E Adalgisa formou-se mulher esquecida daquela afobada primeira paixão. E quando passaram dez anos, ela nem lembrou da data. Só por acaso encontrou na farmácia aquele garoto primordial.

- Mas olha eu gostava tanto tanto de você.
- Eu também.

Madama Carlota sentiu alguma coisa no peito sem saber de onde vinha. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns!
Misterioso e evidente!
Um.leitor.

Aline Dias disse...

obrigada!